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terça-feira, 16 de março de 2010

O Contrabando

O contrabando é um tema polemico, sempre difícil de abordar, quer pela carga negativa que motiva em parte da sociedade, quer pelas recordações que faz reviver em muitos dos que a ele dedicaram parte da sua vida.
Independentemente da opinião que cada um possa ter sobre o assunto, a verdade é que o contrabando foi para o Soito, e para muitas aldeias da região, um motor de desenvolvimento em épocas de mingua e carências e que grande numero dos Soitenses, directa ou indirectamente, a ele estiveram ligados, e dele colhiam benefícios, difíceis ou mesmo impossíveis de obter de outro modo.
Durante a Guerra Civil de Espanha, na segunda guerra mundial e nos anos que se seguiram, esta actividade conheceu um volume até então nunca visto, devido á grande procura no mercado internacional de minérios de ferro de que o nosso País era produtor, assim, por aqui passavam milhares de toneladas, que eram transportadas pelo homem aos ombros, até ao País vizinho, num percurso de dezenas de quilómetros e por veredas quase intransitáveis. Foi uma época desgastante para as gentes desta aldeia, devido ao sacrifício quase sobre humano a que se sujeitavam, principalmente os homens e os rapazes, que transportavam o carrego sob o rigor das intempéries.
Ainda hoje são visíveis, um pouco por toda a zona dita de rota do contrabando, dezenas de minas que só o eram de nome, onde o minério era descarregado, como se ali fosse extraído, para despistar as autoridades que o perseguiam
Tendo decaído ou mesmo desaparecido a procura do minério, outros produtos se tornaram apetecíveis para o contrabando: tecidos, calçado, maquinas, café, tabaco, etc., que continuou a ser feito a pé até aos fins da década de sessenta, altura em que os cavalos, por mais rápidos, logo mais lucrativos, tomaram o lugar dos homens, embora cada cavalo fosse normalmente conduzido por um cavaleiro, á excepção das noites de nevoeiro que acontecia o contrario, era o cavalo que conduzia o cavaleiro.
De salientar que havia muito proprietários de cavalos que não arriscavam a sua vida, mas que tinham, o que se pode dizer de criados, para ir com o cavalo e a quem era paga a parte
correspondente.
Para além deste tipo de contrabando por grosso, havia o pequeno contrabando domestico,
em que a maioria dos artigos consumiveis ou de decoração eram trazidos de Espanha.
O azeite, laranjas, louças, perfumes e a maioria do vestuário usado nesta aldeia era de proveniência Castelhana e as noivas ali iam buscar quase todo o seu enxoval, que muitas vezes deixavam no caminho, apreendido pelas mãos da Guarda Civil ( Carabineiros) ou da Guarda Fiscal.
Tecnicamente, contrabando quer dizer introduzir mercadoria sem pagar direitos, contudo épocas houve, em que ele era mesmo incentivado pelas autoridades a nível particular, foi o caso do café, em que as nossas autoridades fechavam os olhos ao café que ia para o lado de lá, ou das autoridades espanholas, que igualmente fechavam mais os olhos ao que saía do seu país, do que ao que nele entrava.
Homens sem medo, corajosos e aventureiros eram os do Soito, que nas décadas de sessenta e setenta, se dedicavam ao contrabando quase diariamente, num desafio continuo á injusta e desumana lei, arriscando a vida para sustento próprio e dos seus, já que outras fontes de rendimento escasseavam.


Se o Soito ganhou algo com o contrabando, também pagou caro o preço pelo arrojo e aventura, pois nele deixou alguns mártires: uns que caíram e derramaram o seu sangue nas veredas do contrabando, vitimas da força bruta das balas do poder, lembro João Marques Lavrador e José Russo de Carvalho que na idade dos sonhos e no vigor da vida, foram assassinados á entrada norte dos Foios, em doze de Setembro de 1960 e ainda outros dois jovens na flor da vida Manuel Joaquim Nunes Fernandes e Hermenegildo Robalo Carrilho, estes arrastados pela fúria das águas do Côa quando tentavam atravessar o rio em seus cavalos, acabando por nele morrer afogados, em trinta de Dezembro de 1962
Já decorreram quase quatro décadas sobre estas fatídicas datas, mas os acontecimentos continuam vivos na memória das nossas gentes.
Já depois do vinte cinco de Abril foi assassinado pela GF e ás portas do Soito, um cidadão Espanhol conhecido como Juan, juntamente com vários cavalos, este macabro acontecimento deu aso ao declínio senão mesmo á morte do contrabando a cavalo.
A esse propósito não posso deixar de me sentir hoje indignado, ao ver que a lei e a justiça actuais, são mais brandas para os criminosos de hoje, do que eram então para quem, á falta de outro meio de sustento, se dedicava ao contrabando, era, em suma, mais criminoso há trinta anos um contrabandista, do que hoje é um larapio, um vigarista, ou um pedófilo, por isso eles enxameiam a Terra e passeiam-se na nossa sociedade impunemente.
Durante cerca de duas décadas em que os cavalos foram o transporte mais usado para o intercâmbio de mercadorias entre esta aldeia e outras terras da raia castelhana, dezenas deles foram abatidos pelas forças da autoridade, na escuridão da noite e sorte a dos cavaleiros que os montavam não terem igual destino.
De referir que nas longas e algentes noites de Inverno, calcando a neve ou o gelo, não era raro, após horas e horas a cavalgar sob um frio intenso, haver quem ao chegar ao povo, á porta de casa, se sentisse de tal modo enregelado que era incapaz de desmontar do cavalo sem que fosse ajudado por algum amigo ou familiar e ser necessário aquece-lo com um acolhedor lume, um quente cobertor e uma bebida revigorante.
Na década de setenta, talvez aquela em que esta actividade conheceu maior desenvolvimento, tanto cavalos como cavaleiros não tinham descanso, e embora fosse habitual levarem só mercadoria para o exterior, não era raro aproveitarem o retorno com qualquer outro tipo de artigos que oferecessem lucro e tivessem procura.
As veredas que durante décadas ou mesmo séculos, foram testemunhas de tanto sacrifício, medo, mas também coragem e aventura por parte de milhares de Soitenses estão agora tomadas pela vegetação bravia que as camuflou como se nunca tivessem existido, no entanto elas são um marco inesquecível que deve ser perpetuado na historia do Soito.
O Soito foi uma terra de cavalos e em 1968 contei a passar á minha porta mais de cem desses animais carregados de tabaco destinado a nuestros hermanos que tanto o apreciavam
Hoje, com o desaparecimento do contrabando desapareceram também quase todos estes belos, elegantes e dóceis animais, mas não podem ser dissociados da historia, porque ela lhe foi comum.

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